sábado, 4 de junho de 2016

Avesso das coisas





Avesso das coisas

Dia desses trocávamos confidências, e perguntaste assim, de repente:
— Você se sabe?
— Hoje me sei mais que ontem. Hoje me sei amar! — eu respondi ainda tão insegura.

Revejo os textos na minha cabeça como um alimento que se rumina. Hoje eu envelheci mais dez semanas. Mas o tempo é tão curto e complexo; o tempo é caprichoso. Esse deus vaidoso, que não marca nada, não quer dizer nada, e ainda assim insistimos em adorá-lo.

Hoje sei muito mais que ontem, e muito menos do que amanhã eu descobrirei de mim, porque estou ávida na demanda de me saber de verdade e profundamente. Eu sou uma metamorfose constante. Hoje meu compromisso é com meu dentro e fora; e ainda com aquela camada inconsciente; e ainda também, com meu avesso. (talvez seja exatamente aí, no avesso, que eu me descubra).

Eu me atrevi a nascer ‘mulher’, num mundo machista e castrador; atrevi a ser delicada em meio aos lobos devoradores; eu quis ser gentil, onde os fracos não tem vez; quis ser mato, ser formiga, ser vaga-lume, ser lago azul profundo; eu vivia sonhando meus sonhos solitários e inventando meu próprio mundo.

Eu me atrevi a nascer com alma, num lugar onde todos só têm fome de carne.

Minha alma demandava escutar orquestras sinfônicas (hoje eu sei), enquanto o rádio estralava sempre qualquer coisa vomitada e sem nexo, geralmente algo que falasse de sexo. Eu queria balé (Ah, as bailarinas leves e lindas nas pontas dos pés, no meu livrinho do lago dos cisnes). Eu queria ser cisne.

Eu queria ser poeta, enquanto os adultos escolhiam para mim, à revelia, a profissão que me deixasse mais rica, porque segundo eles, eu era tão inteligente que poderia ser o que quisesse... Eu só queria ser livre! Eu nunca quis (e ainda não quero) ser rica. Não essa riqueza capitalista contada em posses e cifrões.

— Tolos! Não sabem o quanto sou rica!!

Eu sou dona dos céus e das estrelas da noite, esses pirilampos piscantes. E sou dona da lua dos lobos e dos amantes. Eu sou deles e eles são meus:

O rio, a pedra do rio e o mar; o sal do mar, e o doce das cachoeiras. A voz do pintassilgo, as asas das borboletas e o canto das sereias.

Eu sou o ouro, que com outro metal se funde (humilde como ele só), para que, na mão do ourives, possa se transformar na joia que enfeita o pescoço da princesa. Eu sou a realeza!

Eu sou o avesso de tudo que me ensinaram até aqui. E eu não vou mais parar.

***

Dia desses, eu trocava confissões com um anjo, e ele me ensinou a voar.


Lilly Araújo – 20/05/2016
18:30



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