quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Tempo para tudo



Tempo para tudo

A brisa batia contra o corpo tecendo-lhe uma sensação de liberdade e prazer. Cada pelo de seu braço era chicoteado pelas rajadas de ar que se contrapunham durante aquele trajeto.
Um misto de alegria e angústia o visitara naquela manhã. Alguns diriam que era o poder sensitivo, outros, que era apenas coincidência. Fosse como fosse, aquele dia não seria apenas mais um dia qualquer.
***
Dias antes, fazia tudo o que qualquer pessoa faria. Pagava as contas, enfrentava filas, chateava-se com o caos do trânsito, comia os deliciosos salgadinhos da velha amiga, beijava os netos e se orgulhava dos filhos. Era um pouco de cada coisa. Um pouco de pai, um pouco de avô, um pouco de amante, um pouco de amigo, um pouco de cidadão. Um tanto HOMEM.
Gastava seu tempo da melhor forma possível. Humano que era não saberia prever o dia exato do seu fim aqui nessa efêmera e passageira vida. Então usava sua inteligência e força para fazer o bem como sabia. Não era perfeito. Nunca seria. Era homem! E aprendia pouco a pouco a ser melhor a cada dia.
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Minutos antes, sentia-se bem. Viril. Saudável. Completo. Até arriscava-se a umas reflexões felizes que faziam brotar um sorriso no canto dos lábios, dando-lhe um ar jovial, o que contrapunha com seus traços de homem de meia idade, com marcas de expressões que o tempo havia lhe sulcado, principalmente na testa e entre os olhos, com precisão de um artesão que esculpe a sua escultura.
Segurava firme o guidom da moto. A cada vez que acelerava, sentia-se no comando de tudo. Desviava-se de imperfeições na estrada com destreza ímpar. Acelerava mais em trechos íngremes, vencendo a barreira da gravidade que impunha seu peso. Já em outros trechos, desacelerava tranquilamente, enquanto seus olhos percorriam a paisagem natural, quase primitiva, daquele cerrado que o cercava. Os sons eram esparsos. O silencio do percurso só era quebrado por sons de pássaros, do seu próprio motor e pelos raros veículos que se cruzavam com ele em destino oposto ao seu.
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O movimento foi abrupto e sem aviso prévio. Sem seta, sem buzina, nem luz de freio. Não deu tempo. Apenas um relampejar de movimentos disformes e descoordenados se sequenciou. E então se ouviu o estrondar de corpos se chocando. Não havia dado tempo de perceber o animal, nem tão pouco de desviar-se dele. O pobre infeliz invadiu a pista desavisadamente.
Agora as sensações eram mais confusas que nunca. O barulho de motor persistiu por alguns instantes, enquanto ele ainda tentava entender o que lhe havia acontecido. Sentiu um leve gosto de sangue subir-lhe pela garganta e tomar-lhe o paladar. O corpo já não obedecia mais a seus comandos. A última coisa que viu antes de tudo se escurecer foi os olhos grandes e redondos do cavalo na horizontal, fitando fixamente os seus próprios olhos, com uma expressão de incompreensão tanto quanto as sua.
***
Muitos dias depois, compreenderíamos enfim que aquele dia era apenas o princípio do seu adeus. E que depois do trágico acontecido, ele só continuaria entre nós para que seus entes queridos tivessem um pouco mais de tempo junto a sua figura insubstituível.
Despediu-se da vida às prestações. Dia após dia, em cima daquele leito de hospital. Agora sim, teve tempo de entender que encerrava aqui sua curta, mas muito preciosa, jornada.
***
Fechou os olhos pela última vez numa primavera do mês de outubro. Alçou voo ao desconhecido. E atrás de si deixou um rastro de extremas saudades.
Não por castigo. Não por imprudência. Não por razão explicável nenhuma que se buscasse. Apenas porque há tempo para tudo nesse nosso existir. Inclusive tempo de se despedir.

Homenagem a Sr. Ronaldo Carlos (+19/10/2011)

© Por Lilly Araújo - Direitos Autorais Reservados

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